Emparelhado a nossa boa fama de pessoas acolhedoras, encarnamos a Recife Fria* - uma caricatura pouco honesta com os pressupostos coloniais, isso porque disfarçamos nossos abismos hierárquicos de classes em relações de afetos, ainda que cínicas. A classe média vai desistindo de ter ares aristocráticos, sua melhor versão cafona, é verdade, mas sem talento para ser ‘elite intelectual’, exercita suas ‘ficções de superioridade’ em ficções bem elaboradas de ‘bondade’. O refinamento de um fascismo com tons de doçura e falsa horizontalidade.
A arquitetura e o urbanismo da cidade vão refletindo essas perversidades, desde o cada vez mais minúsculo quarto-de-empregada à ausência de calçadas. A cidade ‘meritocrática’ elege seus bairros ‘nobres’ pelos quais só se pode circular de carro. Pedestres e ciclistas, mal-vindos. Criminalizando bairros, comunidades e agrupamentos sociais, a Grande Recife segue com seus mais de 5 mil mortos ao ano expiando suas culpas nas missas de domingo e feriados de santos.
Aos que ousam escapar desse plano das ‘pessoas de bem’, essa diminuta parcela sob a qual pesa como tonelada certa lucidez, resta um movimento pendular entre a dormência e o delírio de ser no exercício-de-si alguma mudança. Com sonhos de escapismo para algum mato, seguimos ‘Criaturas Urbanas’ inventando edições micro-revolucionárias. Com ilusões de gangsters, formamos 4uadrilhas munidos de muita instiga e táticas midiáticas.
Uma das nossas atuais versões fez QG num bairro famoso por seu mercado popular. Ali onde evocamos Esú e todos os entes convulsivos e desconformados para começar a destravar essa charmosa cidade a partir de sua Encruzilhada. Entre Meditações Críticas, um tanto de gratiluz e Deus-me-dribe, lamentaremos nossos mortos, mas não choraremos à toa. Estamos nas ruas lambendo as paredes, sendo a cidade encorporada de nós.
- Ô de casa, aceita a diferença entrar?!!!
- Oi?!!
- Tá môco?
* referência ao curta de Kleber Mendonça, "Recife Frio" de 2009.
